A ARCA DE NOÉ

Primeiro foi o livro com trinta e dois poemas, quase todos falando de bichos, publicado em 1970. Apareceram algumas canções que o próprio poetinha ia musicando, como A Casa ou O Pato que eu mesmo recordo saber cantar bem antes de ver, na televisão, o especial A Arca de Noé -- programa em horário nobre (Sexta Super) da TV Globo, para o Dia das Crianças, no ano de 1980.



Segundo encontro no acervo do Instituto Cultural Itaú - Uma Discografia Brasileira, ambas as canções fizeram parte de um disco lançado em 1972: Vinícius canta «Nossa Filha Gabriela».


Grande parte do poemas, no entanto, só receberia melodia quando Toquinho e amigos investiram em uma homenagem a Vinícius de Moraes. A primeira Arca foi recebida com entusiasmo pela crítica, destacando-se como uma produção que soube respeitar seu ouvinte, qualquer idade ele tenha...


Solene é abertura deste disco, fazendo a gente imaginar a procissão de animais que, sob as barbas de Noé, saem para povoar a terra depois de 40 dias e 40 noites que viveram debaixo da Chuvarada, amontoados, encolhidos e amassados dentro da arca... Chico Buarque é quem lê os primeiros versos até que tudo mais vai virando canção.


Vinícius de Moraes dá preferência aos pequenos e estranhos animais, como a pulga sempre pulando na perna do "freguês", as abelhas no zune-que-zune, a coruja encolhidinha, a foca desengonçada subindo e descendo escada, o gato mudando de opinião. Mas no meio da bicharada, a porta que vive aberta no céu, uma casa e um relógio. Até aula de piano tem. Onde o poeta buscou inspiração para colocar uma aula de piano nessa arca?


Ele era um homem de muitas leituras e escutas. Provavelmente conhecia a obra do músico francês Camille Saint-Säens, autor de O Carvanal do Animais. Pois bem que nesse desfile, além de cangurus, galos e galinhas, leão, burro, musaranho, cisne, até aquário e fósseis, aparecem os pianistas... e, como o colega francês, o poeta brasileiro tratou de incluir uma aula de piano na roda de tantos bicos, bocas, bigodes, pêlos e penas. Acredita? Outra curiosidade: Vinícius de Moraes, anos antes de escrever A Arca de Noé, ter traduzido o livro Orações na Arca, da religiosa francesa Carmen Bernos de Gastold.


Com ritmo simples e gracioso, o poetinha faz os versos de sua Arca com um humor muito agradável. Sua verdadeira inspiração parece ser a tradição popular, reaproveitando o motivo bíblico da reunião dos animais e a pressa que todos têm por encontrar um lugar no mundo. Também, no fraseado do texto, muitas expressões usadas cotidianamente se fazem presentes, carregadas de espontaneidade e proximidade afetiva com seu público.


E as marcas do tecido poético prolongam-se nas melodias compostas por Toquinho, Paulo Soledade, Tom Jobim, entre outros. Em ambos os álbuns A Arca de Noé, boa parte dos arranjos foram realizados por Rogério Duprat, diversificando sonoridades e andamentos. Ao todo, 25 canções na voz dos melhores intérpretes da MPB.


Da primeira Arca (1980), vale destacar a feinha Corujinha cantada por Elis Regina, os contornos do salto do Gato feitos por Marina, a animação de Alceu Valença como adestrador de Foca, além do grupo Boca Livre construindo a casa da rua dos bobos e o pato pateta do quarteto vocal MPB-4.


Na segunda embarcação sonora (1981), Fagner compõe a melodia e interpreta o Leão, ferozmente, enquanto Jane Duboc ilumina o Girassol com voz de mel e anil. Elba Ramalho traz o sotaque do forró para a roda do Peru e Ney Matogrosso faz intriga sobre a Galinha D'Angola... contraste com sua própria participação, no álbum anteiror, suavemente abrindo caminho para São Francisco (nas duas faixas, impecável). E Clara Nunes emprestando majestade à marcha-rancho da Formiga.


Por fim, é interessante lembrar que os poemas de Vinícius de Moraes e as canções guardam algumas diferenças, seja na organização do texto, seja na troca ou repetição de certos fragmentos. Nada mais natural, pois a canção alia ao verso o sentido da melodia, movimentando novas idéias, fazendo-nos descobrir detalhes que podem passar despercebidos à primeira leitura... Laura Sandroni e Maria José Nóbrega ainda pontuam, no parecer sobre A Arca de Noé para a Fundação Nacional do Livro, que, a partir da 12.ª edição (Companhia das Letrinhas, 1997), a obra vem acrescida das letras das canções dos discos, mais três poemas inéditos de Vinícius de Moraes. É conferir!

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